CAC 50 anos — A democratização vivida
10 de junho de 1974. Não se cumpriram ainda dois meses da Revolução dos Cravos e já no Porto uma ação de rua inscreve na história da construção de centros culturais e espaços museológicos dedicados à criação contemporânea um momento inédito e até hoje sem paralelo. Protagonizado por artistas e intelectuais da cidade ligados a instituições como a Cooperativa Árvore, o Teatro Experimental do Porto, a Seiva Trupe ou o Cineclube do Porto, o “Enterro do Museu Soares dos Reis” dá voz a uma reivindicação popular alimentada pela pulsão efervescente de abertura à modernidade, resgatada do pesado silêncio da ditadura. Um movimento simbólico de protesto materializa-se nesse ato performático que, de forma mais ou menos direta, vai constituir a semente da Fundação de Serralves e do seu Museu de Arte Contemporânea.
Nascido de uma reclamação da cidade, o CAC – Centro de Arte Contemporânea encontra, cerca de dois anos depois, justamente no Museu Nacional Soares dos Reis (MNSR), o espaço para desenvolver e implementar um programa que, olhando retrospetivamente, pareceria impossível de concretizar. Para isso contribuíram o voluntarismo e profissionalismo que Fernando Pernes, Etheline Rosas e Mário Teixeira da Silva verteram no projeto. Na verdade, a ambição daquilo que acabou por se produzir num Porto ainda incipientemente confrontado com o pensamento vanguardista da arte contemporânea poderia parecer utópico.
Para tal desígnio concorreram muitas instituições com um sentido de descentralização vital, como a Fundação Calouste Gulbenkian, a Sociedade Nacional de Belas-Artes, a Fundação Eng. António de Almeida ou a Galeria do Jornal de Notícias. Por outro lado, num gesto de abertura ao processo de democratização do país, muitas Embaixadas e os Institutos Culturais estrangeiros com delegações na cidade também colaboraram entusiasticamente com esta possibilidade de abertura do Porto à internacionalização da arte; aqui detêm um papel muito especial o Goethe-Institut, o Instituto Italiano di Cultura, o British Council e o Institut Français, parceiros de primeira hora, que se viriam mais tarde a afirmar como dos primeiros apoiantes da nascente Fundação de Serralves.
Desde muito cedo Fernando Pernes, diretor do CAC, percebeu que a memória do que estava a construir nas exposições temporárias desta instituição poderia vir a urdir a malha de uma possível coleção de um museu futuro. Tal veio a concretizar-se mediante a atuação do Estado, que compreendeu que o apoio à arte contemporânea melhor se concretizaria desse modo: por isso, muitas das obras apresentadas nas diversas exposições temporárias promovidas pelo CAC integram hoje em dia as coleções do MNSR e do Estado.
Alberto Carneiro, Ângelo de Sousa, Álvaro Lapa, Júlio Pomar, Emília Nadal, Eduardo Nery, entre tantos outros, mostram as suas obras de forma antológica pela primeira vez no Porto. Como não reconhecer um trabalho que se ancora, precisamente, nessa mostra de caráter enciclopédico intitulada “Levantamento da arte do século XX no Porto”, que se consolidaria como proposta de um passado não apreendido e de um futuro a preservar.
“CAC 50 anos – A democratização vivida” revisita a história desta aventura primordial no contexto institucional português, recriando alguns dos seus momentos expositivos e trazendo à luz muitos documentos gráficos pouco conhecidos.
É evidente que qualquer releitura da história se impõe por critérios subjetivos (neste caso do curador da mostra) e pragmáticos (como sejam a dificuldade em aceder a determinados objetos e documentos), mas aquilo que hoje se apresenta constituirá, sem dúvida, um momento de reflexão futura daquilo que este país conquistou com a reclamação de algo tão simples e complexo quanto isto: A LIBERDADE.
Miguel von Haffe Pérez
Curador da Exposição CAC – 50 anos: A Democratização Vivida