Está agendado para amanhã o encerramento das Comemorações do 1º centenário do nascimento de Eugénio de Andrade, um dos grandes poetas portugueses.
Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas, nasceu a 19 janeiro de 1923. Manteve sempre uma postura de independência relativamente aos vários movimentos literários com que a sua obra coexistiu ao longo de mais de cinquenta anos de atividade poética.
Revelou-se em 1948, com As Mãos e os Frutos, a que se seguiria, em 1950, Os Amantes sem Dinheiro. Os seus livros foram traduzidos em muitos países e ao longo da sua vida foi distinguido com inúmeros prémios, entre eles o Prémio Camões, em 2001.
Morreu a 13 junho de 2005 no Porto, cidade que o acolheu mais de metade da sua vida.
O município do Fundão, de onde era natural Eugénio de Andrade, encerra as comemorações do centenário do poeta com a apresentação, amanhã 19 janeiro, do documentário “Com palavras amo”, que contou com a colaboração de centenas de pessoas do concelho.
“Com palavras amo” teve como objetivo transformar palavras escritas por Eugénio de Andrade em som, fazê-las habitar as vozes das pessoas.
A este propósito, evocamos a relação de recíproca admiração entre Eugénio de Andrade e o pintor modernista Augusto Gomes, representado na coleção do Museu Nacional Soares dos Reis.
Se a poesia de Eugénio de Andrade está povoada de heróis míticos, também por lá é lembrada a “gente real dos meios piscatórios portugueses, personagem coletiva, indistinta na dureza da sobrevivência quotidiana, por vezes entre as redes da vida e da morte.
No livro Os Afluentes do Silêncio (1997), referindo-se à pintura de Augusto Gomes, artista plástico de Matosinhos, Eugénio tece um elogio que abrange simultaneamente o mestre e os pescadores:
A sua memória está cheia de imagens: pescadores que regressam da faina ainda com o mar nos olhos e na boca, saltimbancos exibindo simultaneamente graça e miséria, mulheres que ora conversam à porta ora ameaçam as vagas por lhes terem roubado tudo: os homens, os filhos, o pão — imagens de todos os dias, que já são muitos (…). (…) não me lembro de quadro seu onde o povo não esteja de corpo inteiro, ora senhor dos gestos com que pega no seu destino ora exasperado e ameaçador diante da miséria e outras formas de morte. (Andrade, 1997: 105-106)
Neste excerto, Eugénio realça sobretudo o heroísmo da sobrevivência, tanto dos pescadores, que se debatem com as vagas para ultrapassar a miséria, como das mulheres que perderam os entes queridos.
Também Gomes, em telas como Família (1941), Gente do Mar (1941) ou Os Pescadores (1962), evidencia, em traços largos, a vida árdua da gente do mar, que bem conhece. Os seus pincéis realçam pormenores que recorrem em diversos quadros: os músculos dos homens surgem tensos, para denotarem o esforço; as bocas enormes gritam perante o naufrágio, e mostram o desespero; as mãos erguem-se, num ato que tem tanto de fé, quanto de revolta.
Eugénio reconhece o talento do mestre no poema Imagem e louvor de Augusto Gomes”[1]:
Ele pinta lentamente uma luz supliciada,
porque tudo é amor e ama-se lentamente;
aqui e ali sublinha uma pálpebra, uns lábios,
e os olhos procuram o coração dos homens.
Nas suas mãos, raparigas passam despenteadas,
passa um pescador de rosto azul,
passa outra vez setembro, uma criança ainda,
e o mar irrompe de sombra em sombra,
porque tudo é amor, amor difícil, turvo,
lutando por ser diáfano em suas mãos.
Com alegria, descobre a cor da liberdade,
dos barcos, da juventude, e logo esquece.
Volta. Recomeça. Amorosamente
encontra um corpo – um corpo ? –
uma coluna de espanto e recomeça.
Escreve agora na terra um nome inocente,
cinco sílabas brancas, todas elas maduras,
e confia melancólico um segredo
à luz de cinza que se desprende da noite.
Créditos de Imagem
No texto: As Visitas, Augusto Gomes, 1953 @Museu Nacional Soares dos Reis
Na capa: Retrato do poeta Eugénio de Andrade – 1953, coleção [em 1978] do poeta Eugénio de Andrade (blog Cidade Surpreendente)
[1] Mancelos, João. Do Mediterrâneo aos Mares do Sul: Heróis Navegantes na Poesia de Eugénio de Andrade