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Miguel Guedes

Inesperado familiar

 

Talvez seja nessa força de prender olhar, de revolta contra o inanimado, furacão-sopro, numa angular forma de surpresa onde nos quedamos redondos. A propósito de uma visita à exposição de longa duração do Museu Nacional Soares dos Reis que antecedia em vinte e quatro horas uma boa conversa aberta ao público no interior do Museu, o convite que me foi feito para palestrar acerca de algo que se iluminasse durante o percurso transformou-se numa revelação com atilhos, atalhos e emoções em pêndulo, como se subitamente me reconhecesse num inesperado familiar. Suspendeu-se a gentiliza da visita acompanhada pelo conhecimento de quem me guiava, quando dei por mim a tropeçar sem querer, a dobrar-me sobre mim sem saber. Numa parede, a solo, o “Mártir Cristão” de Joaquim Vitorino Ribeiro, obra que nunca antes me passara pelos olhos mas que reconhecia como familiar, provavelmente nos antípodas da intenção que o autor nos quis entregar quando a pintou em 1879. Quase um século e meio depois, eis-me preso e suspenso num conjunto de imagens mentais que afloram à pele como tela e que iluminariam a óleo, indesmentivelmente, o meu objecto de desejo falado no dia seguinte.

 

Há uma espécie de entidade reveladora no espanto, elemento químico iridescente que convoca e agrega memórias consoante os nossos desejos e convicções. E foi daí que parti para o “Je vous salue, Marie” de Godard ou para o “Magic Chords” de Sharon Van Etten. O mesmo e exacto rosto de Myriem Roussel, a semelhante melancolia trágica da compositora norte-americana. Ponto de passagem para outra sala e para outra visão, confluência de géneros e estéticas, o que mais impressiona no “Martir Cristão” é a sua contemporaneidade, a sua eroticidade perturbada por uma morte plena que nem todos antecipam ao primeiro olhar. Mais do que um perfil de adolescente ou da pele de lobo que Paula Rêgo não desdenharia, é a leveza como comoção pesada que se retém. Com tanta riqueza e deslumbre pelo Museu, nada se esquece nas costas nem nada se omite do que ainda se está para ver. Mas são estes lampejos identificados, inesperados, que se elevam a sinais guia que nos garantem que nada do que verdadeiramente nos toca, ainda que fora do tempo certo para ver, ouvir ou sentir, se vai.

 

 

Miguel Guedes
Presidente e Diretor Artístico do Coliseu do Porto